Uma das lendas sobre Natal era que Clarice Lispector odiou a cidade em sua visita nos anos 40. A escritora ucraniana, radicada no Brasil, Clarice Lispector passou um tempo na capital potiguar, viajando com familiares, e ela não curtiu muito a cidade e principalmente dos seus costumes.
Uma parte dos textos chamou a capital potiguar de “cidade sem caráter”, no qual interpretei como uma crítica à cidade por ter sido influenciada pelos costumes americanos, principalmente na Segunda Guerra Mundial, quando Parnamirim serviu de Base Militar. O texto completo pode ser visto logo abaixo.
Os registros foram feitos em um diário que está disponível online no Instituto Moreira Salles.
Em 1943, a escitora Clarice Lispector obteve a naturalização brasileira e casou com o diplomata Maury Gurgel Valente, que tinha parentes no Nordeste brasileiro. No ano seguinte, ela mudou-se com seu marido para Belém, devido às funções como vice-cônsul. Em julho do mesmo ano, o marido se mudaria para Nápoles e foi neste trajeto que passou por Natal.
Na capital potiguar, eles esperariam transporte, que chegaria primeiro a Maury e mais tarde a seus dependentes, no caso Clarice, seguindo as ordens enviadas pelo governo. Em 30 de julho, embarcou, e no dia seguinte chegou à Libéria, em uma base da força aérea dos Estados Unidos em Fisherman’s Lake.
Em 1 de agosto, parou em Bolama, na Guiné portuguesa, e foi para Dakar, no Senegal, onde ingressou em um avião particular que a levou a Lisboa, Portugal. Em Lisboa, atendeu a um jantar dado pelo poeta e diplomata brasileiro Ribeiro Couto. Depois foi ao Marrocos, Argélia e apenas em agosto que chegou à Itália.
A caderneta de Clarice Lispector foi doada ao instituto pelo filho e herdeiro da escritora, Paulo Gurgel Valente, em janeiro de 2012. Após passar pelo processo comum a todos os documentos que são depositados sob os nossos cuidados, como higienização e catalogação, a caderneta foi digitalizada em alta resolução e seu conteúdo transcrito.
Os trechos de sua viagem à capital potiguar podem ser conferidos a seguir:
Penworthy Trade Mark reg. US. Pat. Office
Name Clarice Gurgel Valente Nº 347
Chegamos a Natal a 19 de julho, 2 horas da tarde, hospedados na base aérea de Parnamirim, dos americanos. Limpeza e ordem aqui, comida nutritiva e lisa. Cidade pequena, sem caráter, casas sem harmonia, nem mesmo velhice.1 Gente sem típico, sem especial força [lacuna].2
A prima de M. (Mauro Valente, marido de Clarisse na época. Acredita-se que se refere à Anita Gurgel Valente), uma pessoa meramente isenta de certo tipo de consciência, me diz quando às vezes falo (sempre tão sem interesse por mim mesma, mas falando por falar), ela diz espantada: é isso mesmo! Olhe como ela disse mesmo o que eu queria dizer!
Na sua estadia, ela trocou dinheiro brasileiro por estrangeiro no Banco do Brasil, pois viajaria em breve para Europa:
Exteriores – Rio
De Dacar a Argel você viajará em avião da Air France
Faltando dinheiro brasileiro, trocar os cheques no Banco do Brasil em Natal a razão de Cr$19,80 cada dólar
Não levar dinheiro brasileiro para o exterior – trocá-lo em dólares ou enviar à Tania
É possível que venha após a nossa partida a autorização para viajar em avião militar americano do A.T.C. (Air Transport Command)
Em Natal, ela passou uma temporada em Recife e voltou à capital potiguar para visitar Anita Gurgel Vieira, prima do marido de Clarice. Os registros mostram que ela vistou a praia de Areia Preta e se hospedou no Grande Hotel:
De Natal a Recife: terça e sábado
De Recife a Natal: sexta e segunda + Praia de Areia Preta + Anita Gurgel Vieira quarto 58 – Grande Hotel
Esta página, a seguir, mostra trechos do livro de “O Ilustre”, que foi escrito no meio de uma anotação do endereço da potiguar Anita Gurgel. O Instituto organizou a anotação, que estava escrito desta seguinte forma:
] Ela como perdera a sensibilidade de si mesma e volvia o corpo para um só sentido, o da vida de Vicente! Queria, por um esforço de finalidade obscura, transformar-se, porém seu modo de pensar era mais forte do que ela.
Anita Gurgel Vieira – caixa postal 35
Natal – Rio Grande do Norte
Brasil
Adriano – Ele tinha as unhas demasiado cortadas encostadas à cal seca da parede. (Dentes belos e limpos)
No diário, por fim, tem outro texto que que se refere à Natal:
Fisherman’s Lake, Libéria, 31 de julho de 1944 – 09 horas da manhã
Ah, o corpo, o corpo. Como é difícil arranjar uma posição confortável para ele!
Em Natal, uma noite, (não, acordei no meio ouvindo), uma noite de insônia, ouvi aquela música do ar (já tinha ouvido antes). Tive mesmo medo. É alguma coisa extremamente doce e sem própria melodia, mas feita de sons que poderiam se organizar em melodia. É algo insaciável flutuante mas ininterrupto. Tenho como a certeza de que captei a vibração do ar, que recebi ondas. É bonito, x.
O Instituto Moreira Salles é uma organização de Walther Moreira Salles em 1990 e fica no bairro da Gávea, no Rio de Janeiro. Eles guardam parte dos acervos fotográficos, literários, musicais e de artes plásticas de diversos artistas brasileiros, incluindo Clarice Lispector, que estão disponíveis para consulta no site da instituição.
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