O Brechando está em clima de Natal e pesquisando sobre as festas antigamente na capital potiguar encontramos uma crônica de Natal de Newton Navarro. A história narra sobre um garoto que mora nas Quintas e tenta conseguir uns trocados no dia 24 de dezembro.
Este texto teve a sua publicação no jornal “O Poti” em 1971, na edição de 25 de dezembro. O texto será publicado na íntegra.
Confira a crônica de Natal de Newton Navarro a seguir
Jornal O Poti, 24 de dezembro de 1971. Fonte: Hemeroteca da Biblioteca Nacional.
Estória de Natal
Senti o Natal deveria ser assim como se o carregasse na alma pequena e pobre, como um fardo leve, espécie de presente a se acomodar no coração. Lugar especial entre as lembranças amargas. Um sopro de ar, mas que fosse luminoso e confortasse sentir no corpo mirrado e sujo. Ou seria o Natal somente aquela festa de que todos falavam com antecipação de dias, ruas enfeitadas, vitrines iluminadas, gente feliz e bem vestida carregando pelas calçadas presentes volumosos? Mas, fora assim, e a ele não caberia entender o Natal. Pois o lhe cercava agora era a mesma paisagem feia de todos os dias. A mesma condição humilhante de sair pela cidade buscando o sustento para a mãe viúva e aleijada.
As luzes, a festa e a alegria de todos pairava distante, assim como quando olhava o céu esplendente em noites de calmaria, serenidade nas alturas e do terreiro dos fundos do casebre das Quintas, contava e recontava as estreias e sabia-se distante de tudo aquilo somente feito para as distâncias maiores e o faz de conta de posse que há no olhar pedinte e deslumbrado das crianças pobres como ele.
Dobrou a esquina e descobriu, quase num pasmo, a esteira de luzes da rua principal. Um desperdício de claridades; e viu, assim, de súbito, como se rolasse do meio de toda aquela fosforescência, quadros que se substituíam uns aos outros, numa série maravilhosa: carros abarroados de volumes coloridos, centenas de pessoas que se alegravam com situações cantantes, cristais reverberantes de vitrines, os tentando em molduras de metais que gritavam na luz, um mundo mágico de brinquedos. Viu mais e muita coisa ou viu, como, por exemplo, os sinos que tocavam sonidos de prata e havia uma música que jamais ele conhecera nas eletrolas dos bares ou entreouvira nos rádios da vizinhança onde morava. Aquilo era o Natal!
E a medida que caminhava os deslumbramentos se sucediam, tropeçava e pessoas diversas das que costumeiramente encontrava pela avenida entrevia súbitos clarões de lantejoulas, bolas, riscos de luz, cordões de estrela, pequenos sinos, manchas nebulosas com lenta neblina prateada, festões, guirlandas, guizos, cavalos de crinas enfeitadas de pássaros e flores, velas, círios nascendo de florações enormes, cornetas a jogar no espaço frutos coloridos, faixas a se desdobrarem como num lençol acariciante que anjos sustentavam coisas que jamais vira ou sonhara, coisas mais belas que as noites estreladas e pobres do seu terreirinho da casa das Quintas.
Tanto andou e tão pasmado estava que não se lembrou da obrigação das esmolas. Aquele mundo da rua deslumbrante, nas vésperas do Natal, fizera o esquecer os deveres e logo naquela noite, em que seria talvez fácil conseguir esmolas generosas e ajuda polpudas cédulas valiosas. Mas, o fato é que já andara rua acima, rua abaixo, não sabia vezes quantas, vadiara esquinas, se aprofundara em transversais e somente os olhos cheios de luzes e os ouvidos misturados com tantas vozes e ritmos atestavam o seu perdulário passeio pelas calçadas.
Agora, no entanto, se sentia cansado. Os pés descalços ardiam e tinha um pouco de fome e roer a barriga funda. Um níquel no bolso não trazia para o coletivo e já era tarde. O movimento diminuía. Embora os cordões de luzes parecessem mais vivos e encadeassem tanto quanto pereciam, enleantes cada vez mais baixos, cruéis, tentando enlaçá-lo ameaçadores. Então correu pelo primeiro beco que encontrou a esquerda e nas sombras que a medida que caminhava, mais se adensavam. Respirou com força, sacudiu a cabeça para afastar as visões luminosas que ainda o perseguiam e desapareceu sob o renque de fícus, na direção da ladeira, nos rumos das Quintas.
Havia luz na salinha de frente. Decerto, a mãe ainda não dormia. Bateu de leve para não assustá-la e forçou a meia porta. Junto à mesa, aclarada pela lamparina, viu o rosto materno, mais cheio de alegria do que claridade. Mais seu, do que revelado pela falsa luminosidade da chama. Sentiu vontade de falar qualquer coisa. Dizer: “Mãe” e calar-se; mas, logo, foi recebido pela mulher com uma notícia que, para ela, parecia a coisa mais extraordinária daquela noite. Simplesmente a mãe lhe anunciava que a vizinha, uma pobre lavadeira, sua amiga, descansara em paz, uma criança. Que fosse vê-la então, indagar se carecia de cuidados, de algum pequeno favor, da sua presença, o que fosse, mas que saísse logo, de vez para ela não era possível o caminhar.
Apressado, ganhou a rua sem sequer fechar a meia porta.
Na casa da vizinha, na sala, numa cama suja, a amiga de sua mãe serenava num nosso delicado, em descanso. Tinha ao lado, o homem que também cabaceava na vigília e, junto, uma luz de vela. Entre os dois, envolto de panos, muito alvos que a luz dourava, um menino agitava os braços e tinha nos olhos como estrelas miúdas a chama da vela repetida. Com vagar chegou mais perto. Achou por bem não tocar na criança e nem tão pouco acordar a mulher.
O marido este dedespertara e pedia silêncio. Agora o que ele, o menbino, não sabia explicar era o tumulto que voltava a sua alma pequenina. Não mais a paisagem luminosa, centante alvoroçada das ruas que deixara havia pouco. Mas, uma outra festa desta feita, em sua alma pequena e pobre e mais do que isso, uma pressão sobre os ombros descarnados, forçando a dobrar os joelhos a se curvar, a se ajoelhar e por fim diante daquele outro menino pobre, mas que estranho! Cheio de festa das luzes e de toda a alegria da cidade grande, que ainda, tão pouco deixara como se para sempre.
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