O carnaval, após 1 ano de abandono devido à pandemia, está de volta. Neste momento, as pessoas estão empolgadas com a volta da folia de momo e loucas para enfiar o pé na jaca. Mas, como era o carnaval na primeira metade do século XX? A gente achou uma matéria do Diário de Natal que fala sobre o assunto.
A reportagem entrevistou o poeta Jaime dos Guimarães, irmão de Palmyra Wanderley, que contou a experiência da folia de momo. A publicação aconteceu em 16 de fevereiro de 1969. Jaime faleceu em 1986.
Vamos reproduzir a matéria na íntegra. Leia, portanto, a seguir:
“Alcancei o carnaval de Natal em 12”. Assim depõe Jaime dos Guimarães Wanderley, poeta setentão e tranquilo teatrólogo, que até 1912 morava em um engenho perto de Arês e, em seguida, veio morar na Avenida Rio Branco para assistir, naquele ano, pela primeira vez, ao carnaval natalense. “Era na rua da Palha, hoje Vigário Bartolomeu, arrumada como um verso parnasiano”. A ruazinha se enfeitava de bandeirolas coloridas e muita palha de coqueiro. No começo da rua ficava o coreto com a banda de música. A população toda da cidade – 20 mil habitantes – desfilava dia e noite, logo, em busca das batalhas de confete e dos entrudos famosos. Era uma Natal lírica, engomada nas lapinhas do poeta Itajubá e que fazia com que o menino Jaime ficasse apenas de longe vendo papangus e blocos saudosos.
As batalhas
“As batalhas eram feitas através de bisnagas e relógios d’água, carregados de água de cheiro. Depois vieram as “latranjinhas”, feitas de cera de carnaúba, coloridas, que eram jogadas em desconhecidos, e especialmente, desconhecidos”. O poeta relembra o primeiro folião importante que conheceu: Cavalcanti Grande, dono do bloco “Maxixeira”, que sai às 05 horas da manhã ainda sob a luz da Estrela Dalva. O bloco madrugador saia do mercadão onde foliões tomaram uma cachacinha violenta e prodigiosa, sendo que muitos alentos (entusiastas) usavam tapioca com material de “parede” (nota do Brechando: pintavam a cara. Tipo a gíria ‘fazendo reboco na cara’ para se referir que a mulher passou base, pó compacto e maquiagem no rosto no geral).
“Cavalcanti Grande era realmente um gigante. Morreu de uma pilhéria. Não dava bom dia nem boa tarde. Em vez dessas saudações dizia ‘É proibido amar?“ ‘. E acrescentou que o Clube de Benedito só saia à noite, “Na hora do Bacurau”. O Clube do Benedito era o mais popular. Bené morava num sítio fabuloso, no Baldo, passava o ano inteiro a preparar os carantões e monstros de papelão que formavam a grande atração do carnaval natalense em 12. Mas o referido clube, que passava o ano todo na preparação, desfilava pela noite como um meteoro. Saindo às 06 horas da noite, duas horas depois já estava encerrada sua participação. “Dele ficavam marchinhas que velhos boêmias ainda sabem lembrar”.
Vassourinhas
Outro bloco inesquecível para o poeta Jaime é a “Divisão Branca”, legionários que hoje seriam chamados de Lawrences da Arábia, clube de ricos, todos a cavalo, lanceiros vestidos de branco e culote encarnado, chapéus de combatente grego. Tinha um chefe audaz e vitorioso: Berôncio Guerra. Sem esquecer, contudo, o humilde clube operário dos “Tubarões do Norte”. Mas quem ficou na imaginação popular – continuava Jaime- foi o “Vassourinhas”, cuja marcha inesquecida para ele, tem estribilho de saudade, cantada depois com “As Pastorinhas”. Lá diziam os vasculhadores nas tardes de carnaval:
Sempre, sempre em movimento,
Sempre, sempre em movimento,
Ó Vassourinhas, varre o chão,
Ó Vassourinhas, varre o chão…
Em 1923, Jaime e seu bando da lua cantavam no carnaval a marchinha de Cirineu de Vasconcelos, sucesso da época, principalmente no Redinha Clube.
Eu quero você pra mim,
E você sabe porquê,
Você será toda minha
E eu todinho de você.
“Das batalhas de água e confete, a mais famosa era a da casa de Ezequiel Wanderley, a chamada a Batalha do Porto Artur. 12 senhoras contra 10 cavalheiros; estes armados de sacos cheios de confete”, relembra.
Na Tavares de Lyra
Em 24, o carnaval desceu para a Avenida Tavares de Lyra. De onde hoje é a esquina do Banco do RGN (Bandern) até o cais: caminho do corso, vinte carros (Ford de bigode) no máximo. As velhas fotografias condizem bem com o tempo de antigamente: os homens, chapéu panamá, colarinho duro, paletó, almofadinha, vendo o corso passar. Os boêmios, mais pobres, terão uma festa saudável no banho de rio, pulando do cais depois da meia-noite.
“As meninas eram magníficas, davam “linhas” a nós rapazes. Era o tempo de piscar o olho. Os pais cedem mal em sua severidade e podíamos pegar na mão da donzela. Beleza” – exclamou o ex-boêmio do Majestic.
A bebida era cana “puríssima” de alambique, conhaque Macieira Cinco Estrelas (Importado da França), “meladinhas” e, para os mais pobres, conhaque “Arame”. Carnaval na Avenida era das seis às 10 horas da noite. Havia três bondes para a Ribeira e muita gente ficou preocupada em chegar cedo em casa. Do tempo em que chegar cedo em casa era compromisso irrevogável. Sinal de seriedade.
Festa do clube só existia uma: no Natal Clube, animado pelo seu presidente, o velho José Pinto, gerente de “A República”, humorista que nunca deixou de fazer quadradinhas debochando dos “monstros sagrados” da província. “Mas a maior parte das senhoras e senhoritas, homens de responsabilidade, recolhiam-se aos colégios de freira para o retiro. Diz-se que o demônio tinha no carnaval sua grande vez de manga. Congregado mariano (Padres) não podia nem ver de longe a folia. Um foi fazê-lo, olhando as irmãs Madureira (que eram belas/ nota do Brechando: freiras) e um foi expulso com fita azul e tudo”.
Na Vila de Tirol
A grande figura da cidade era, nos idos de 20, o Coronel Cascudo, o homem mais rico e mais importante. Ele tinha uma vila que ocupava um quarteirão inteiro no Tirol. O chamado “Principado do Tirol”. E seu príncipe era Cascudinho, jovial adolescente.
“Na Vila Cascudo, Cascudinha reunia dez amigos para o carnaval. Passávamos o dia todo lá, bebendo o melhor conhaque francês e o legítimo vinho do Porto. Era tudo magnífico. Só saímos a noite no carro “Page”, limousine preta, carro de Reis, para a festa de carnaval do Natal Clube. Neste carro, éramos donos da cidade, porque foi, até hoje, o automóvel mais bonito que chegou aqui”.
E concluiu: “Depois, a vila foi vendida, fomos nos separando o tempo engolindo o tempo – resta a vida e estas lembranças que lhe dou de presente”. Para o poeta Jaime só duram mesmo os hinos do clube “Maxixada”, que saía de madrugada sob a luz das estrelas.
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