O crítico de cinema Sihan Félix publicou uma carta aberta à Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), para não tirar o cineclube da escola Núcleo de Educação Infantil (NEI). Denominado de Cineiclube pelos alunos, o projeto teve sua primeira começou em maio do ano passado e estimulou que jovens assistissem filmes e também fizessem as suas próprias produções. Ainda tinha uma sessão de filmes, que acontecia mensalmente e com debate sobre o assunto após a exibição.
Para o Félix, “concede às crianças do Ensino Fundamental o protagonismo sobre a criticidade através do “pensar fora da caixa”, sobre ver o mundo com muitos outros olhos. A partir do cinema, promovemos a construção do pensar crítico e oportunizamos o exercício da cidadania.“.
Além disso, dois filmes produzidos pelo projeto já participaram de alguns festivais de cinema espalhados pelo Brasil, como o Festival Internacional de Baia Formosa.
O NEI foi criado em 1979 como Unidade Suplementar pela Resolução 55/1979 – COSUNI. Em sua origem nomeado Núcleo Educacional Infantil, tinha como característica inicial de atuar como creche para atender à comunidade universitária feminina – funcionárias, alunas e professoras da UFRN, recebendo crianças a partir de 3 meses de idade. Tal projeto, entretanto, foi inviabilizado pelos altos custos, que a infraestrutura de uma creche acarretaria, desse modo, o núcleo foi definido como pré-escola, atendendo crianças na faixa etária de 1 ano e 8 meses a 2 dois anos e 6 meses aos 5 anos e 11 meses de idade. Em 2008, o ingresso das crianças foi ampliado para a comunidade em geral.
Atualmente, funciona como uma Escola de Aplicação, vinculada à Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e ao Centro de Educação – CE, dedicando-se à Educação Infantil (creche e pré-escola) e ao Ensino Fundamental (ciclo de alfabetização). Já em 2013, por meio da Resolução 13/2013, de 18 de outubro de 2013, esta comunidade escolar acolhe as crianças e os servidores da Unidade Educacional Infantil-UEI/UFRN, ampliando assim o seu atendimento.
Em seus mais de 30 anos de existência construiu uma educação de qualidade, ampliou a oferta de ensino para a educação básica, com a implementação do Ensino Fundamental no ano de 2010; iniciou o seu percurso na Pesquisa, e na Extensão investido em ações de formação docente (Cursos de Aperfeiçoamento, Cursos de Especialização e organização de Seminários e Encontros de Educação).
Esta não é a primeira polêmica com o NEI, no ano de 2016, quando o deputado federal Rogério Marinho (PSDB), surgiu em abril de 2016, após uma paralisação dos docentes da UFRN, incluindo os professores do NEI, em razão de protestos nacionais contra a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional 55 (Antes chamada de PEC 241, que teve seu nome alterado quando passou ao Senado), a PEC do Teto dos Gastos.
Após um ano, o Ministério Público Federal do Rio Grande do Norte (MPF/RN) decidiu arquivar a denúncia.
Confira a carta aberta a seguir:
NOTA DE REPÚDIO – CARTA ABERTA
por Sihan Felix
Em 2016, o atraso no repasse de verba do governo federal para a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) assustou. Especulava-se o fechamento de cursos estáveis. Em meio a isso, o vestibular do curso de Letras com habilitação em Língua Brasileira de Sinais (Libras) não recebeu o valor necessário e só resistiu devido ao empenho e convicção desvinculada da própria UFRN. À época, em entrevista ao jornal Tribuna do Norte, o diretor do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA ou Azulão) declarou: “Como eles querem falar em inclusão se não repassam sequer os recursos básicos para que ela seja feita na prática […], claramente a prioridade que o governo dá à causa ficou apenas na teoria.”
Se, em 2017, a UFRN entrou para a lista das melhores universidades do mundo (de acordo com o World University Rankings), sendo a terceira do Norte-Nordeste e a 15ª do país, é por méritos de quem faz a instituição em si, de quem trabalha duro para fazer da nossa universidade uma referência.
Não distante desse mundo macro de governo federal versus universidade federal, existe um projeto – do qual faço parte – que, tal qual o macro, tenta resistir por comprometimento próprio. Enquanto barreiras se levantam e tentam impedir o nosso prosseguir, nós as derrubamos, sem luvas, sem medo. Acreditamos que o nosso poder está apoiado nas gerações futuras e, somente por termos essa consciência libertadora, encontramos forças para seguir desmoronando obstáculos.
Há quem diga que o nosso projeto é insuficiente para ter recursos aprovados e investidos. Esses aventureiros do imediatismo não conseguem alcançar a complexa rede que envolve o que fazemos. Pensar o futuro, pensar em construir através da educação, parece passar longe da mente de quem, de alguma forma, senta-se para avaliar. Como avaliar o que dará resultado no futuro?
Falta empatia para discernir entre o próprio futuro enquanto profissional e o futuro daqueles que estão à sua volta. Falta visão para além do cabresto imposto por uma mente fadada à mesmice. E se há cabresto, há rédeas aqui. Por mais que sejam invisíveis, elas estão transformando um futuro encorajador em um amanhã datado regido por capitães-do-mato.
Mas podemos ir aos dados ainda mais concretos. Nosso projeto, o CINEICLUBE: Práticas Cineclubistas na Escola da Infância, concede às crianças do Ensino Fundamental do Núcleo da Educação da Infância (NEI-Cap/UFRN) o protagonismo sobre a criticidade através do “pensar fora da caixa”, sobre ver o mundo com muitos outros olhos. A partir do cinema, promovemos a construção do pensar crítico e oportunizamos o exercício da cidadania.
E vamos além: Durante as nossas atividades, diversas escolas da cidade participam do projeto. Crianças de outras escolas públicas têm a oportunidade de ir às sessões cineclubistas, de debater, de expor suas ideias – construindo um mundo extremamente mais diverso e inclusivo. Sempre através de experiências que ultrapassam quaisquer questões do simplesmente ensino-aprendizagem. Nossa meta é o pensar, é direcionar à mente a entender que as dúvidas movem o mundo. Desse modo, temos preceitos teóricos contundentes (que não vêm ao caso nesta carta aberta) para afirmar que é, de fato, a partir da infância que se pode acompanhar a transformação de pequenos indagadores em eternos buscadores da verdade. Desses que, futuramente, não terão medo do surgimento de mentes que possam derrubar amarras. Porque eles já não as terão. Desses que ameaçam a retirada dos cabrestos alheios. E, se há algum medo de poder olhar ao redor, há uma cegueira intrínseca, que faz manter o chicote de capitão-do-mato em mãos por mais que a luz no fim do túnel seja, enfim, o medo da Casa Grande. Esta que, assustada, perceberá as portas da senzala abertas e virá abaixo.
Se o exposto já é motivo para manter o nosso projeto vivo, nós vamos muito além mesmo assim: Enquanto projeto, o CINEICLUBE inclui a Oficina de Apreciação e Criação de Cinema (OAC). Em quatro encontros de duas horas e meia em média, as crianças entram em contato com a linguagem cinematográfica e com o modus operandi da construção de um filme – desde a ideia inicial à filmagem em si. Em 2017, foram duas dessas oficinas. Portanto, tivemos dois curtas-metragens pensados, trabalhados, roteirizados e dirigidos pelas crianças: Limbo (ou de quem sofre bullying) e Tolerância.
Pode parecer pouco, mas não é. E mesmo que se acredite como sendo, nós conseguimos muito mais: Ambos os filmes produzidos por nossas crianças adentraram em um mundo essencialmente de adultos: o circuito de festivais. Limbo […] foi selecionado – até agora (meados de março de 2018) – para o VIII FINC – Festival Internacional de Cinema de Baía Formosa, para o I Cine Cariri (no Ceará), para o I Cine Verão – Festival de Cinema da Cidade do Sol (aqui em Natal) e para a Rói-Rói / Mostra de Cinema Infantil (em Triunfo/PE). Tolerância também foi selecionado para os mesmos Cine Cariri e Rói-Rói.
Com exceção do Cine Verão, que englobou filmes especificamente potiguares, e o FINC, com sua Mostra de Curtas Potiguares, os outros são festivais nacionais. Todos, ainda, têm os filmes selecionados escritos e dirigidos por adultos, mesmo que, por exemplo, a Rói-Rói seja para filmes ditos infantis e que tenhamos participado na categoria destinada ao Ensino Fundamental do Cine Cariri.
E não paramos por aí. Limbo […] trouxe do Ceará para o Rio Grande do Norte o prêmio de Melhor Filme eleito pelo júri oficial e Tolerância trouxe o prêmio de Melhor Filme eleito pelo júri popular. Estivemos nas cidades do Crato, Juazeiro do Norte e Nova Olinda para acompanhar o festival e, para nossa felicidade, receber os prêmios na noite de encerramento. Dispendemos recursos próprios por amor ao que fazemos, por acreditar em nosso trabalho, por poder ver um resultado tão expressivo em tão pouco tempo de projeto.
Para completar, e voltando à nossa crença no pensar, as crianças não construíram simples filmes infantis. Ambos são reflexões profundas sobre bullying, sobre aceitação, sobre preconceito e (in)tolerância. São filmes realizados por crianças sim, com temáticas que elas vivem sem dúvida, mas que acertam em cheio e sem dó cada adulto que veste a carapuça de tolo e as desmerecem.
Acreditamos, por fim, que a não aprovação em 2018 de recursos financeiros para o nosso projeto – extremamente bem respaldado cientificamente e com resultados mais do que expressivos – pela avaliação da UFRN é digna de pena. Não significa qualquer autopiedade e, muito menos, que deixaremos de lutar por tudo que pudermos fazer durante esse ano. É um pesar muito sentido sobre a quem uma das melhores universidades do país e do mundo, que tanto luta, entrega as avaliações de projetos que podem significar o futuro. Se não do macro, no mínimo de cada criança que, sem dúvida alguma, terá a chance de se tornar um adulto livre, livre na acepção mais ampla da palavra.
Livre para ser aquilo que se é. Livre para ser dúvida. Livre para pensar. Livre para se permitir.
Livre.
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