“Um panfleto para Godard” era um livro com publicação original de 1986. Era uma plaquete de poemas verbais e visuais produzidos em resposta à censura do filme “Je vous salue, Marie” (em tradução livre, “Eu vos saúdo, Maria”), de Jean-Luc Godard, eventualmente imposta a partir de 1986 pelo Governo Sarney. Os poemas de Moacy, a crítica à censura justamente tecer críticas mais amplas ao contexto sócio-histórico que permitiu a existência dessa fratura na liberdade de expressão.
Tudo numa construção picaresca, tão cara ao estilo de escrita de Moacy, em que, frequentemente, o leitor se depara rindo do abismo humanitário em que se encontra. Moacy, em “Um panfleto para Godard”, não se reserva apenas às críticas, que seguem sendo atualíssimas; em seus poemas também é possível observar vários trechos que convidam o leitor a reaver a fé na esperança.
Equipe da Munganga foi responsável pela reedição
Os poetas Ayrton Alves Badriah e Victor H. Azevedo, da Munganga Edições, são os responsáveis pela segunda edição da obra. Com o apoio dos familiares, e com revisão de Jefferson Martim Turibio, eles vão lançar o livro no próximo sábado (26), às 16 horas, no Seburubu (na Avenida Deodoro da Fonseca, 307, Cidade Alta). Neste endereço, encontrei Ayrton, meu parceiro de outros trabalhos paralelos, e inclusive das duas edições da revista do Brechando, e ele contou detalhes da produção do livro, totalmente manual.
“Só não mostro o livro, porque acredita que fui levar a guilhotina (máquina de cortar papéis) na Ribeira? Perrengues das impressões artesanais”, brincou Ayrton (o moço da foto acima do título) em entrevista ao Brechando.
Confira a entrevista completa a seguir.
Tem um grande problema em Natal (como em outros lugares, obviamente): a gente não conhece as coisas daqui. “Será que não tem nenhum poeta realmente interessante aqui?”, foi a pergunta que eu e Victor nos fizemos há 5 anos, e, para nossa surpresa, a gente descobriu nomes interessantíssimos, como Myriam Coeli, Antônio Pinto de Medeiros, Moacy Cirne e João Gualberto, para ficarmos nestes. Moacy nos impressionou desde o início, porque ele é um poeta muito fora da caixinha, né?, e é interessantíssimo por causa disso. Não sei se ele é mais conhecido no Rio do que aqui (e talvez seja mesmo, por causa da sua trajetória como professor da UFF), mas posso afirmar que ele é mais conhecido como estudioso de quadrinhos do que como poeta, isso sim.
É tanto que ele criou o Chico Doido de Caicó, né?
Sim, ele e Ney Leandro de Castro. Mas ali tem mais a mão dele do que de Nei Leandro, eu acho.
Vi até ele [Moacy] dizer em uma entrevista para um blogue, assim, lá da antiga, para Abimael, que sua mãe é que teria criado o personagem.
Não conheço essa entrevista, mas de Moacy a gente não espera menos (risos).
Descobrimos o nome de Moacy, e a gente ficou fã dele de imediato. Em 2020, a família dele doou para a cidade do Natal a biblioteca particular dele, que se encontrava no Rio de Janeiro. Entre livros e revistas, foram mais de 8 mil volumes. Atualmente, esse material está guardado. Em breve, a Prefeitura do Natal, através da Funcarte (Fundação Capitania das Artes), vai disponibilizar esses livros para a consulta pública. Eu trabalhei na equipe que catalogou esses livros e foi assim que encontrei a filha dele, Isadora Cirne, que também ajudou na catalogação. Então, eu falei pra ela que eu e Victor sempre tivemos o desejo de publicar algo dele. Principalmente aquelas obras que já estavam fora de circulação há algum tempo.
Tem livros dele que eu nunca cheguei a ver. E, por coincidência, a gente estava lá na Biblioteca do Município e vimos um exemplar de “Um panfleto para Godard”. Conversando com Isadora, a filha dele, ela ficou muito empolgada, super apoiou. O projeto demorou para acontecer por causa da pandemia. Não foi fácil pra ninguém, e o que restava para a utopia de uma editora independente, né? Então, esse projeto acabou tendo que ficar de molho por um tempo. E aí, para grande surpresa nossa, a gente conseguiu recursos e estamos colocando esse livro para rodar neste mês de março.
Fale mais do livro…
É uma plaquete de 36 páginas, confeccionada artesanalmente. Sou suspeito para falar, mas acho o conjunto de poemas bastante interessante. Foi construída tendo como mote a censura do governo José Sarney, por pressão da ala conservadora da Igreja Católica, sobre o filme de Jean-Luc Godard, “Je vous salue, Marie”. Além disso, o filme foi censurado por quase três anos. Mesmo assim, Moacy conseguiu a cópia do filme e o exibiu para os alunos da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói. Podendo ser preso e tudo mais.
Nessa plaquete, que nada mais é que um livro de poucas páginas, o leitor encontrará poemas experimentais que tecem severas críticas à nossa “elite do atraso”. Críticas com um tom burlesco, uma vez que dá aquela alfinetada que antes da dor gera o riso. Para além desse tom mais crítico, é possível encontrar nos poemas palavras relacionadas ao campo semântico da esperança, a dias melhores, uma vez que em 1986 a democracia brasileira engatinhava e ainda sofria com os graves resíduos do golpe de 64. Apesar de ter sido escrito em 1986, Moacy parece também escrever em “Um panfleto para Godard” sobre o Brasil de agora.
O que foi mais difícil na produção do livro?
Para além desta pandemia, o grande trabalho foi o de deixar a segunda edição exatamente igual à primeira quanto aos textos. Por serem poemas que se espraiam de forma pouco usual no silêncio branco da página. Às vezes a gente ajustava em um lugar e isso acabava gerando um desajuste em outro canto. Foram sucessivas revisões para chegarmos na versão final. Aqui e ali tivemos algumas dúvidas quanto às escolhas linguísticas do autor, mas, dada a impossibilidade de comunicação com o poeta, restou manter tudo como ele pensou na primeira edição. Foi um trabalho árduo, mas, graças ao empenho e à paciência de Victor, que fica à frente da parte da apresentação gráfica dos livros da Munganga, conseguimos.
Para finalizar, conte-me os detalhes do lançamento
Será um lançamento simples. Como é uma retomada das atividades “presenciais” da Munganga. Nós pensamos em cultivar um espaço mais convidativo ao diálogo, em que o livro e o seu autor sejam o centro da coisa. Além disso, os processos dos bastidores do livro foram bem bonitos, e um autor que, mesmo morando há muito tempo no Rio, nunca desligou-se da cena cultural do RN não merecia menos, sendo, inclusive, um grande divulgador das letras potiguares fora da província. Esperamos que a gente tenha conseguido colocar no livro o carinho que temos pela obra e pela pessoa de Moacy.
O ambiente para comportar esse lançamento não poderia ser outro: o Seburubu, um sebo aconchegante em que o amor aos livros é visível em cada canto.
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Sobre Moacy Cirne
Moacy Cirne foi um poeta e artista visual, nascido em São José do Seridó, Rio Grande do Norte, em 1943. Além disso, é considerado um dos especialistas brasileiros em histórias em quadrinhos e o poeta potiguar foi um dos fundadores, em 1967, de uma das neovanguardas brasileiras mais importantes do pós-guerra, o Poema-Processo, ao lado de Wlademir Dias-Pino, Álvaro de Sá, Nei Leandro de Castro e Pedro Bertolino, entre outros.
Além de “Um panfleto para Godard” (1986), sua obra poética, das mais interessantes entre os melhores poetas experimentais brasileiros, segundo Ricardo Domeneck na Revista Modo de Usar e Cia., é formada por livros como: “Objetos verbais” (1979), “Cinema Pax” (1983), “Docemente experimental” (1988), “Qualquer tudo” (1993), “Continua na próxima” (1994), “Rio Vermelho” (1998), “Poemas inaugurais” (2007) e “Seridó Seridós” (2013).
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