Na dinâmica cada uma das participantes deveria se apresentar à boneca Maria e contar um pouco de sua história de vida. Todas na roda eram lésbicas e bissexuais. Apesar das diferentes classes sociais e cores, todavia, elas tinham algo em comum: sofriam com o machismo, sem contar com a misoginia e lesbofobia. Assumirem que são donas do próprio corpo e escolher como quer namorar não é uma tarefa fácil e, de cabeça erguida, elas conseguiram.
Recentemente, Fátima Aguiar passou por um problema no trabalho por ser lésbica. “Eu desenvolvia um projeto para crianças aonde trabalhava e minha chefe era evangélica. Um dia eu sofri um assédio moral pela mesma, por conta da forma de andar e do jeito de vestir. Hoje, nós conseguimos respeito, mas vejo que nossos direitos estamos passando por um retrocesso”.
Organizado pelo Grupo Afirmativo de Mulheres Independentes (GAMI) e a Liga Brasileira de Lésbicas (LBL), o Encontro Nacional da LBL aconteceu no Palácio da Cultura, também conhecida como a Pinacoteca do Estado. O prédio, que já funcionou como a antiga Governadoria, discutiu sobre direito das lésbicas e bissexuais, racismo, machismo, a misoginia e lesbofobia. Apesar de abordar diversos assuntos, todas as participantes falam a mesma frase: ser mulher é difícil na sociedade, mas ser lésbica é ainda mais.
“O processo da invisibilidade lésbica é uma extensão da invisibilidade contra a mulher. A não aceitação das lésbicas é devido à falta de aceitação das práticas sexuais da mulher. As pessoas ainda querem negar que a mulher tenha o direito de ter prazer sexual com quem quiser. Numa sociedade machista, muitos homens não aceitam o fato da mulher poder sentir prazer sexual sem a ajuda do pênis “, afirmou Heliana Hemitério, integrante do Conselho Nacional de Saúde. “Para mim difícil foi me tornar negra, aceitar a minha cor da pele. Quando eu me aceitei como negra, foi mais fácil de me aceitar como lésbica”, continuou.
Já a Altamira Simões, integrante da LBL no estado da Bahia, conta das dificuldades de se assumir ser lésbica depois dos 40 anos, principalmente quando se já teve filhos. “Fui casada com um homem e tive três filhas. Mas, nos últimos cinco anos, eu me apaixonei por uma mulher e somos casadas até hoje. Para mim, fazer o ativismo, na verdade, foi uma forma de sobrevivência social e combater às violências. Tive que conversar com minha filha de 10 anos, na época, argumentando que eu e minha companheira fazíamos bem uma para outra, pois tínhamos uma relação de zelo e cuidado, algo que nunca tive antes.”.
Foi graças ao ativismo que Altamira conseguiu desconstruir várias questões sobre o LGBT. “Eu era muito preconceituosa. Tanto que minha filha mais velha dizia: ‘Como assim você namorando uma mulher se você tinha preconceito com lésbicas?’. Hoje eu reconheço que tinha uma versão machista, achando que o homem podia fazer tudo e a mulher não podia aderir a certos comportamentos.”.
Hoje, Altamira é avó e diz que a neta reconhece ela e sua esposa como avós. “Ela vai crescer num mundo onde toda forma de amor aceita e teve a oportunidade de ter várias avós. Inclusive, ela chegou a conhecer a minha mãe, a bisavó dela, que morreu há poucos meses. Fico feliz que minha mãe morreu aceitando a minha companheira como filha. Vejo a minha história como um avanço pessoal e histórico no mundo LGBT”.
Durante três dias participaram 60 mulheres de vários estados brasileiros, como São Paulo, Rio Grande do Sul, Bahia, Pernambuco, e, claro, o Rio Grande do Norte.
Assim como Altamira, Shimene Scheid é mãe, mas apenas aos 25 anos se assumiu como lésbica. “Eu não reconhecia a minha atração por mulheres. Achava que era apenas uma admiração e não um desejo. Somos socializadas para ter relações com homens, pouco importa os nossos desejos. Somos impulsionadas para a romantização da heterossexualidade, vivemos uma pressão social imensa e cruel. E por conta das violências sofridas, do patriarcado, da lesbofobia, é muito difícil nossa própria aceitação. A heterossexualidade é compulsória. E por mais que eu tenha vivido isso por tantos anos, eu não deixo ninguém deslegitimar a minha sexualidade, minhas vivências, meu sujeito politico, minhas lutas. Eu sou mãe e lésbica”
O termo citado por Shimene foi criado pela feminista Adrinne Rich em 1980. Para Rich, as mulheres são convencidas que casamento e a orientação sexual voltadas para os homens são inevitáveis. As mulheres serão doutrinadas pela ideologia do romance heterossexual através de contos de fadas, da televisão, do cinema, etc, isto é, todos esses mecanismos fazem propagandas coercitivas da heterossexualidade e do casamento como padrão. Através desses mecanismos as mulheres seriam aprisionadas psicologicamente à heterossexualidade e tentariam ajustar a mente e o espírito a um modo prescrito de sexualidade.
Embora Rich faça uma análise da experiência lésbica, essa doutrinação também ocorre com os homens, mesmo que de modo diferente.
A Marcelaine Cristina, diferente das duas citadas acima, se assumiu aos 14 anos, quando começou namorar uma garota em Caicó, no qual “ajudou diversas lições e ensinou a enfrentar os tipos de preconceitos”. “Já sentia que era lésbica desde criança. Um dia fui falar com minha mãe, nós morávamos juntas na zona Norte, sobre o que sentia e ela foi maravilhosa comigo, dizendo apenas: ‘Desejava a minha felicidade e lutar para conquistar o seu espaço’. Hoje, ela faz piada comigo e aceita minha companheira”.
O relacionamento de Marcelaine durou dois anos, quando ela morreu após um acidente automobilístico. “Em Caicó, apesar de ser interior, eles aceitam melhor as lésbicas e eu era bem tratada pelos moradores”. Hoje, ela está lutando para arrumar um emprego, voltar aos estudos e está formando uma nova família com uma mulher.
Além de palestras, o encontro contou com diversas atividades culturais.
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