O barulho seco das bobinas de madeira lembra um sapateado. Mas, nesse caso, os movimentos não saem dos pés, e sim das mãos. A plataforma de dança é uma almofada cilíndrica e os movimentos não revelam passos, e sim formas das mais delicadas, originadas pelo balé de mãos de pessoas como dona Maria de Lourdes de Lima, ou “Vó Maria” como é mais conhecida, a principal responsável pela manutenção das rendas de bilro feitas em Ponta Negra. Aos 83 anos, ela segue firme nesse ofício que corre risco de se perder na tradição que é tão antiga quanto a colonização brasileira feita pelos portugueses, já que foram as mulheres d´Além mar que trouxeram essa trama artesanal para o Brasil.
A artesania de Vó Maria foi herança de uma curiosidade infantil. Ela lembra que ainda bem menina observava com bastante atenção as mulheres rendeiras. A mãe, percebendo seu interesse e vendo que ela trocava facilmente as brincadeiras infantis por ficar assistindo aquele balé de mãos, pagou uma pessoa para que ela aprendesse.
“Comecei a fazer renda aos sete anos de idade. De lá para cá, não parei mais. Em menos de um mês eu aprendi a fazer as rendas. Minha primeira peça tinha dez metros. Meu pai levou para a praia e lá vendeu por um cruzado. Eu não sei quanto isso valeria hoje. Mas minha mãe comprou roupas e calçados pra gente, com aquele dinheiro”, relembra a rendeira mais antiga da cidade e responsável pela criação do Núcleo de Produção Artesanal das Rendeiras de Ponta Negra no qual, esporadicamente, faz cursos para pessoas interessadas em aprender um pouco de sua arte. Nessas aulas, elas aprendem não só a conduzir os bilros, mas também a elaborar os moldes (chamados de pique) que ajudam no processo criativo.
Olhando à volta, não é difícil perceber que as rendeiras de Ponta Negra correm risco de extinção. Mas, enquanto pessoas como Vó Maria repassarem esse ofício, há esperança de revitalização. Durante todas as tardes, depois da hora do almoço, na Tapiocaria da Vó, estabelecimento do filho dela, as rendeiras de Ponta Negra se encontram para fazer o seu trabalho. São aproximadamente dez pessoas trabalhando e montando redes, roupas, panos de mesa, dentre outros materiais, com produtos que variam de preços entre R$ 150 a 300. Tanto as rendas quanto o material de produção são vendidos no local, que recebe visita tanto de nativos, quanto de turistas.
No Núcleo, afora os cursos, as pessoas ainda podem comprar as almofadas e os bilros para começar a trabalhar em casa, em tempos que a popularidade do “faça você mesmo” (“Do It Yourself”) está em alta. Tanto as rendas quanto o material de produção são vendidos bastante visitada pela vizinhança e turistas.
Enquanto elas vão chegando, o neto de Vó Maria, Gustavo, ajuda a encher as almofadas com folhas de bananeira. “Porque ela demora para ressecar e é mais resistente”, explica o jovem que viu desde pequeno a avó trabalhando e ensinando as outras pessoas. “É uma forma de distrair a cabeça, conversar sobre os diversos assuntos, observar a vizinhança e, o mais importante, fazer a renda”, complementa a avó.
Josefa Lima, conhecida como D. Zefinha, trabalha com artesanato desde muito cedo. Mas fazia coisas mais simples. “No começo fazia com agulha de crochê, aprendido com a minha mãe. Só depois vieram os bilros. Com dona Maria (Vó Maria) estou há 15 anos, e comecei a fazer blusa, vestido e camiseta”. Uma possível herdeira desse ofício, Zefinha lamenta que as pessoas não valorizam essa “arte” e comenta que “só querem saber apenas de zap-zap (nome popular para o aplicativo Whatsapp). “As pessoas acham o nosso produto muito caro, mas não sabem o quanto de trabalho dá para fazer uma peça, principalmente à mão.
Infelizmente as pessoas só querem saber dos produtos industrializados. Mas, eu faço aqui por amor, amo o meu trabalho e fico bastante feliz quando alguém os compra”. Ao ser questionada se já tentou ensinar aos seus filhos, ela prontamente respondeu: “Nenhum dos meus filhos quis saber de renda”.
Apesar do desânimo, ela adora mostrar o seu trabalho e dividir os ensinamentos. Com uma linha, a mesma utilizada para fazer crochê, ela enrola nos bilros (um conjunto de quatro bilros se chama par) e depois gruda com alfinetes o desenho da renda. Também com alfinetes, Zefinha demarca os pontos. Então, começam os trabalhos.
Os pontos mais comuns são traça e trança. São quase a primeira e a segunda posição do balé da renda. O primeiro citado recebe este nome porque os bilros ficam cruzando entre si. “Ele traça um ao outro, um bilro vai para frente e outro para trás”, contando. Já a trança por sua vez, funciona que nem uma trança no cabelo. Ainda tem o pano e o centro.
Para fazer uma blusa, por exemplo, Zefinha divide o trabalho em oito partes (não necessariamente do mesmo tamanho) para fazer a parte da frente e mais oito de trás. Depois, ela junta tudo e a blusa fica pronta. “É bastante trabalhoso, isso demora mais ou menos um mês para ficar pronto”, explicou.
Bendito o fruto
João Kleber, 28, é o único homem que faz renda na Vila de Ponta Negra e ajuda a fazer o acabamento dos produtos. Apesar de ver a tia e a avó trabalhando com a arte, ele só começou a aprender quando ficou desempregado. Ele viu a renda como uma forma de descansar a mente e ganhar dinheiro, “Sou aqui ‘o bendito é o fruto entre as mulheres”, brincou o jovem que está há dois anos como rendeiro. Ao ser questionado se existe um ponto mais fácil de fazer, Kleber fez ar solene: “Aqui nada é fácil, mas com a prática a gente aprende”, disse ele, admitindo que já ouviu algumas “piadas” pelo fato de ser o único homem da turma. “Eu não ligo, porque o importante é arranjar trabalho e não ficar de bobeira nas ruas”. Sem contar que desde que começou a fazer as rendas com as amigas rendeiras, Kléber passou a perceber que lá é um espaço bastante democrático. “Aqui não tem restrição de cor, deficiência ou credo, aqui mostra que todo mundo pode trabalhar. D. Maria Francisca, por exemplo, uma de nossas rendeiras, é surda, não fale e, mesmo assim, faz lindas rendas. Aprendeu vendo as outras”, disse.
Luana da Silva, funcionária da Tapiocaria, dá suporte para as rendeiras no caso precisarem de uma água ou outras necessidades. A convivência diária não lhe tirou o encanto de ver as peças sendo elaboradas. “Eu acho interessante como elas conseguem encontrar os pontos entre os milhares de bilros. Todos os dias me encanto com a beleza dos pontos e o trabalho final. É gratificante trabalhar aqui e poder ter o contato todo dia com essas mulheres maravilhosas”, contou.
Tradição
Alguns atribuem a tradição à Itália ou França. Ainda existem versões que países como Inglaterra, Espanha e Bélgica, conduziram a técnica para o restante da Europa. Mas o que se sabe é que foram as portuguesas quem trouxeram essa técnica para o Brasil.
Em Portugal, a palavra “renda de bilros” teria surgido por volta de 1560, no reinado de Dom Sebastião. Durante muito tempo, esta arte só foi praticada nos conventos e sua utilidade única era ornamentação de igrejas e das vestes eclesiásticas. No Brasil, a técnica foi trazida pelas portuguesas como uma forma de entretenimento para as mulheres, enquanto os maridos trabalhavam. Aqui, o artesanato da renda foi bastante difundido pelo litoral brasileiro e no Sertão.
Além do Rio Grande do Norte, outros estados da região Nordeste também são reconhecidos produtores de rendas de bilros, a exemplo de Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Ceará e Maranhão, Sergipe, Piauí e Bahia. Na região sudeste destaca-se o Rio de Janeiro, mais precisamente a cidade de Cabo Frio. No Sul do Brasil, o Estado de Santa Catarina se sobressai, mas há registros ainda de produções também no Rio Grande do Sul.
*Texto que fiz para a revista Brouhaha, publicada em novembro de 2017, editada pela Secretaria de Cultura de Natal
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