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  • “Maior legado do Burburinho é o de ter se tornado um espaço simbólico de convivência e de pertencimento para a cena cultural”, disse Nathália Santana.

    “Maior legado do Burburinho é o de ter se tornado um espaço simbólico de convivência e de pertencimento para a cena cultural”, disse Nathália Santana.

    O Burburinho já virou tradição em Natal: um festival que mistura música, artes cênicas e convivência em um clima leve, colorido e cheio de encontros. Desde 2017, o projeto tem conquistado espaço no calendário cultural da cidade e se firmado como um lugar de resistência e afeto em meio às dificuldades da produção cultural.

    Para entender melhor os bastidores e as escolhas da 9ª edição, marcado para este fim de semana, batemos um papo com Nathalia Santana, produtora cultural e idealizadora do festival. Ela falou sobre a motivação de seguir adiante, a presença marcante das mulheres na programação e os desafios de realizar um evento gratuito que já faz parte da memória afetiva dos potiguares.

    A produtora cultural Nathalia Santana (Foto: Cynthia Campos)

    Brechando: O que motiva a continuar o Burburinho? 

    Nathalia Santana: O que me motiva é saber que o Burburinho é um projeto bonito, necessário e significativo para a cidade. Ele contribui para o fortalecimento da nossa cena cultural e para o próprio calendário artístico de Natal. Desde 2017, o festival vem se consolidando como um espaço de hospitalidade e convivência, com uma proposta que vai muito além da programação: é sobre como as pessoas se encontram, se reconhecem e se sentem parte de algo. 

    Acredito que o Burburinho tem uma função simbólica e social importante, a de reaproximar as pessoas, de estimular práticas de convivência mais afetivas e de reocupar o espaço urbano com sentido, carinho e presença. E fazer tudo isso a partir da arte é o que torna o projeto ainda mais especial. 

    A arte é uma ferramenta de desenvolvimento humano, ela desperta sensações, provoca reflexões e amplia o nosso olhar sobre o mundo. Por isso, o que me faz seguir é justamente esse propósito, o de saber que o Burburinho não existe apenas como uma opção de entretenimento, mas como uma ação cultural que transforma, que sensibiliza e que contribui para uma vida coletiva mais rica e mais humana e interessante. 

    Brechando: Vi que o line-up tem uma forte participação feminina. Qual foi o crivo de seleção? 

    Nathalia Santana: A presença das mulheres é algo muito orgânico dentro do meu trabalho na Pinote Produções. Em todos os projetos que realizamos, não apenas no Burburinho, a pauta da equidade de gênero está muito presente. E isso se reflete tanto no palco quanto nos bastidores. 

    Mais de 70% da equipe do festival é composta por mulheres em posições de liderança: na produção artística, na logística, na coordenação de frontstage e backstage, na assessoria de imprensa, na cobertura audiovisual, na comunicação e até na apresentação. É um recorte que não acontece por acaso.

    Eu venho de uma família em que as mulheres sempre foram a base, minha mãe, por exemplo, sempre ocupou esse lugar de força e condução. Então, para mim, é natural conduzir as coisas dessa forma, mas com a consciência de que ainda vivemos em um contexto onde os espaços de visibilidade e decisão são majoritariamente masculinos. Trabalhar para inverter essa lógica é uma escolha e uma responsabilidade.

    Na curadoria deste ano, esse olhar também esteve muito presente. 80% da programação é protagonizada por mulheres. Além disso, essa seleção dialoga com o conceito da edição, o “ano 9”, que simboliza encerramentos e recomeços. Por isso, trouxemos de volta artistas e grupos que fizeram parte da nossa primeira edição, em 2017, como o Coletivo Atores à Deriva, com o espetáculo Flúvio e o Mar, e artistas como Khrystal e Rosa de Pedra, que têm uma relação bonita com a história do festival. 

    Tudo na curadoria tem um sentido. Cada escolha busca despertar no público alguma forma de emoção, reflexão ou encantamento. Queremos que quem passe pelo Burburinho saia minimamente tocado e que perceba, de forma clara, que o protagonismo feminino é parte estrutural da beleza e da força que movem o festival. 

    B: Qual vai ser o diferencial dessa edição? 

    NS: Essa é uma edição desafiadora. Tivemos uma diminuição significativa de recursos em relação ao ano passado, e por isso optamos por concentrar o festival em um único dia. Essa foi a maneira mais responsável de garantir a qualidade da nossa estrutura, a dignidade do trabalho da equipe e dos artistas, e a manutenção das condições essenciais que consideramos inegociáveis: conforto, segurança, organização e um conteúdo artístico relevante. 

    Fazer um evento gratuito tem um custo muito alto, especialmente porque cada dia de programação representa uma grande operação. Então, ao invés de comprometer a qualidade, preferimos reduzir a duração, mantendo o cuidado em cada detalhe. Essa decisão reflete o nosso compromisso com o público e com os profissionais que fazem o festival acontecer. 

    Gosto de falar sobre isso com transparência, porque trabalhamos com incentivo público, através do Programa Djalma Maranhão, e acredito que é nossa responsabilidade comunicar essas realidades. Desde 2017, o Burburinho nunca foi executado com o orçamento ideal, mas sempre com muito empenho, criatividade e um senso de prioridade muito claro: fazer um evento digno, bonito e acessível. 

    Portanto, o grande diferencial desta edição está justamente nessa resistência. É uma edição de reafirmação, de manutenção da qualidade e de continuidade de um projeto que é essencial para a cidade. Mesmo em um ano financeiramente mais delicado, seguimos com o mesmo cuidado de sempre, uma estrutura agradável, uma curadoria bonita e um espaço de convivência que acolhe o público com hospitalidade.

    Mais do que uma edição de grandes novidades, essa é uma edição de permanência, e, hoje, permanecer com qualidade já é, por si só, um grande ato de coragem. 

    B: O que diferencia o Burburinho em relação a outros festivais? 

    NS: O Burburinho é um festival com uma personalidade muito bem definida. A gente trabalha conscientemente na construção desse corpo simbólico, que é feito de identidade, de coerência e de propósito. Desde o início, pensamos o festival não apenas como um evento, mas como uma marca, uma plataforma de convivência em torno do bem-estar e da apreciação artística. 

    Somos um festival de artes integradas, mas o palco não é a nossa principal entrega. O nosso diferencial está no espaço que criamos, um ambiente pensado para que as pessoas se encontrem, troquem, convivam e se reconheçam. O Burburinho é, acima de tudo, um lugar de encontro: com o outro, consigo mesmo e com a arte. 

    A programação, claro, é importante, mas o que nos move é a experiência humana que ela desperta. Cada espetáculo, cada show, cada oficina, intervenção é pensado para tocar, provocar sensações e gerar reflexão. O Burburinho não trabalha a partir da lógica do entretenimento pelo entretenimento. Ele parte da sensibilidade e isso faz toda diferença. 

    Outro traço marcante é que cada edição nasce de um conceito. Esse conceito orienta tudo: a curadoria, o design, a comunicação e até a atmosfera do evento. Nossa identidade visual, por exemplo, sempre desperta muita expectativa, as pessoas esperam para ver qual vai ser a paleta de cores, o universo de símbolos, o tom verbal daquele ano. 

    O Burburinho é, portanto, um festival com alma criativa, sentimental e experimental. Um projeto que une arte e afetividades com um olhar de marca. 

    Brechando: Qual a importância do incentivo público e privado aos festivais? 

    Nathalia Santana: Fazer produção cultural é um exercício profissional que demanda tempo, energia e uma série de recursos, humanos, financeiros e materiais. Toda ideia, para sair do papel, precisa de estrutura, e essa estrutura depende de pessoas e instituições dispostas a investir, apoiar e acreditar. 

    Por isso, os incentivos públicos e privados são fundamentais. Eles viabilizam projetos que, de outra forma, não existiriam. No Brasil, ainda estamos em processo de amadurecimento dessa mentalidade, compreender a cultura como um campo essencial para o desenvolvimento social, e não apenas como um setor de entretenimento. A cultura é um eixo transversal: ela dialoga com a educação, com a saúde, com a cidadania, com a economia e com a construção de territórios mais justos e potentes. 

    O incentivo público tem o papel de garantir que a cultura se mantenha como um direito, acessível a todos. Já o incentivo privado amplia essa rede, fortalecendo o compromisso das empresas e marcas com o desenvolvimento humano e simbólico dos lugares onde atuam. Ambos são estruturantes, porque sustentam a base de um processo civilizatório: o de reconhecer a arte e a cultura como necessidades básicas de uma sociedade saudável, crítica e sensível. 

    Sem incentivo, não há como realizar. Não basta ter boas ideias, é preciso condições para executá-las. E, quando esses apoios existem, o que se produz vai muito além de um evento ou ação pontual, se produz transformação, pertencimento, memória e sentido coletivo que reverbera em muitas esferas. 

    Por fim, qual legado o Burburinho deixa ao povo do RN? 

    Nathalia Santana: Eu acho que o maior legado do Burburinho é o de ter se tornado um espaço simbólico de convivência e de pertencimento para a cena cultural da cidade. É bonito ver como o festival foi se consolidando nesses nove anos como um ponto de encontro das pessoas com a arte, com o outro e consigo mesmas. A gente vê famílias inteiras chegando, crianças correndo, artistas trocando entre si, pessoas se reencontrando, e tudo isso dentro de um ambiente que estimula a sensibilidade, o cuidado e a coletividade. 

    O Burburinho deixa um legado de continuidade, de resistência e de exemplo de como é possível fazer produção cultural de forma responsável, bonita e coerente. É um projeto que nasceu de um sonho e que segue sendo feito com muito trabalho, com muito amor e com uma rede enorme de pessoas que acreditam nele. 

    Acho que o que o Burburinho ensina, de alguma forma, é que a cultura é um bem comum, que ela precisa ser vivida, cuidada e compartilhada. Que é possível fazer um evento gratuito, de qualidade, que valoriza os artistas locais e movimenta a economia criativa da cidade. E, mais do que isso, que a arte pode, sim, ser uma força de transformação social e espiritual. 

    Então, se existe um legado, eu diria que é o de inspirar. Inspirar novas ideias, novos encontros, novos modos de fazer e de viver a cultura no Rio Grande do Norte.