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  • Quando Realidade falou das freiras Da Paróquia de São Gonçalo

    Quando Realidade falou das freiras Da Paróquia de São Gonçalo

    Realidade foi uma revista brasileira lançada primeiramente pela Editora Abril em abril de 1966, que circulou até março de 1976. Além disso, para quem estuda jornalismo, a produção, mesmo extinta, é estudada para reportagem, uma vez que trazia reportagens inovadoras. Sem contar que essas reportagens passavam por um Brasil na Ditadura Militar.

    Apresentava características inovadoras para a época, inclusive com matérias em primeira pessoa, fotos que deixavam perceber a existência do fotógrafo e design gráfico pouco tradicional.

    Em 1967, eles publicaram, portanto, uma reportagem na revista, no qual foram acompanhar freiras potiguares que estavam administrando a paróquia da cidade de São Gonçalo do Amarante. Além disso, essa ideia veio de Dom Eugênio Sales.

    Realidade São Gonçalo
    Irmã Irany

    A seguir reproduzirmos a matéria que destaca a parte do Rio Grande do Norte

    Capa da revista

    O repórter Luiz Fernando Mercadante e o fotógrafo Geraldo Móri foram ao Rio Grande do Norete, Pernambuco, Sergipe e Bahia, para ver de perto uma experiência pioneira da Igreja Católica em paróquias. Por onde eles andaram, ouviram sempre uma nova expressão que promete se espalhar pelo Brasil inteiro: A benção, Sá Vigária?

    Monsenhor Irany Bastos e Realidade falou das freiras Da Paróquia de São Gonçalo

    Uma moça morena, alta, elegante – vestindo um conjunto cor-de-rosa, a cabeça descoberta e uma pequena cruz presa a um colar simples – levantou-se de seu lugar e caminhou com passos seguros para a mesa. Os bispos riram com a inesperada figura daquele monsenhor. E o homem fazia a chamada, pediu desculpas enrubescido (envergonhado):

    — Perdão. Perdão. Madre Irany Bastos.

    Irany Bastos – única mulher presente àquela reunião de bispos – é uma religiosa brasileira, feira da Congregação das Missionárias de Jesus Cristo Crucificado. A congregação, fundada em Campinas, em 1928, é a maior do Brasil, com mais de duas mil religiosas, que usam hábito só dentro dos conventos. Já surgiram assim, vestidas com o povo, para mais facilmente se aproximar do povo.

    Convite de Dom Eugênio

    Irmã Irany – promovida a monsenhor por equívoco em Mar del Plata – foi a primeira freira no mundo, em todos os tempos, a dirigir uma paróquia. Ela foi encarregada da experiência pioneira realizada com êxito em Nísia Floresta, município do Rio Grande do Norte, de 10.300 habitantes, onde tudo começou no dia 3 de outubro de 1963. Irmã Irany exercia seu apostolado no colégio de Campinas, quando recebeu do então arcebispo de Natal, dom Eugênio de Araújo Sales, o convite para ser vigária da paróquia de Nísia Floresta. Dom Eugênio foi idealizador da experiência e, hoje, como administrador apostólico do Arcebispado de Salvador, levou o sistema para a Bahia.

    – Eu- diz ele – pensava assim: e as religiosas do Brasil? São 40 mil! Todas dedicadas a obras ótimas. Mas será que essas obras são as mais urgentes, as mais necessárias à Igreja de hoje? E as paróquias sem padre? São tantas! Se uma parte das religiosas se dispusesse a assumi-las, estaria resolvido esse grande problema.

    As religiosas estavam dispostas e começaram a resolver o problema. Irmã Irany, hoje, é subsecretária do Secretariado Nacional do Apostolado das Religiosas, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, cargo que lhe permite acompanhar de perto o crescimento que ela mesma plantou carinhosamente em Nísia Floresta. Irmã Irany é uma mulher atual. No convento que dirige em Santa Tereza, Rio, o horário das orações a noite foi alterado para permitir que as freiras assistam ao jornal falado da televisão.

    – Não podemos mais ignorar o mundo. Temos que viver dentro dele para santificá-lo. O Cristo é uma mensagem de amor. E para levar essa mensagem é preciso amar de perto.

    Irmã Irany

    Irmã Irany não tem medo da palavra amor. Ela sabe que a vocação religiosa nasce do amor a Jesus e aos homens. E, se engrandece nesse amor. Tendo entrado para o convento com 21 anos, depois de um curso universitário, Irmã Irany tem uma visão sem deformações do mundo.

    – A senhora, quando jovem, já namorou?

    – Eu tive pretendentes. Mas desde os 14 anos já tinha feito a minha escolha. Eu escolhi Jesus Cristo.

    Irmã Irany fala com igual entusiasmo de cada paróquia dirigida por freiras. Já visitou quase todas e acompanha-as mediante um relatório e cartas. Diante de um mapa do Brasil, aponta o estado do Rio Grande do Norte:

    – Aqui – diz – já temos três paróquias exclusivamente com freiras. Nísia, a pioneira, que continua com as Missionárias de Jesus Crucificado; Taipu, com as Irmãs do Imaculado Coração de Maria e São Gonçalo (do Amarante), a mais recente, com as Filhas do Amor Divino.

    Três Filhas do Amor Divino, as Freiras Da Paróquia de São Gonçalo

    Romildo, um garoto de 10 anos, vem montado no seu jegue carregando uma carga de água em pequenos barris, entre os quais ele senta sobre suas próprias pernas e assume o ar das pessoas que estão fazendo coisas muito sérias. Em São Gonçalo, Rio Grande do Norte, Romildo é importante – é o garoto da água. Conhece todo mundo e sabe de tudo.

    – Onde é a casa das freiras, Romildo?

    – Oxente, mas quem é que não sabe? A casa das freiras é cor-de-rosa, bem ali no caminho da igreja. Vão andando comigo que agorinha vou lá. Eu é que levo água de beber para elas.

    Nós também somos povo

    E lá foi, Romildo, ao encontro das freiras.

    Irmã Amália, a superiora, uma cearense de meia-idade, estava no quintal, cercada de pedreiros, uma vez que orientara a construção de uma garagem:

    –Vamos ganhar um transporte. Uma paróquia holandesa vai nos mandar um jipe. São 20 quilômetros até Natal e, nos oito meses que estamos aqui, temos sentindo muita falta de uma condução. Depois, o jipe não vai ser das freiras, mas da paróquia. E será muito útil aos habitantes desta cidade sem veículos.

    Balançando um martelo em uma das mãos, irmã Estanislava, rio-grandense do norte, vem chegando. Ademais, acabou de fazer um remendo em uma janela da velha igreja cheia de morcego. Expulsaram-nos. E abriram para o povo.

    Irmã Corina, a mais jovem das três, está no escritório paroquial, que funciona na própria casa das irmãs, ao lado de uma pequena capela onde só cabem as três feiras. Irmã Corina, paraibana, está preparando os papéis para um batizado que o padre virá fazer no domingo. Mais que os papeis, ela está preparando os pais da criança que vai receber o sacramento. Pois hoje, em São Gonçalo, o batismo deixou de ser um ato convencional; as freiras deram-lhe o significado que ele deve conter: o engajamento cristão dos pais, dos padrinhos e da criança.

    Sem deixar as suas vestes tradicionais, a pequena comunidade religiosa de São Gonçalo, sem padre há 20 anos, demoliu as barreiras e integrou-se no povo.

    – Não somos nós e o povo. Nós também somos o povo – afirma a irmã Amália. Este mês São Gonçalo vai ganhar médico e dentista. Nunca teve. As irmãs conseguiram montar os consultórios e têm o povo ao seu lado para trazer um e outro.

    Romildo, o menino da água, que ri com seus dentes pretos, vai ter assistência. Agora, ainda mais, ele ergue a mão direita, num gesto típico da região, e pede a benção às freiras.

    – Deus o abençoe – diz irmã Amália. Um dia haverá água boa para todos e você encostar o seu burrico. Estude bastante e cresça, que este país precisa de homens fortes.

    E lá vai, Romildo, levando, portanto, a sua água e sorrindo, feliz.